domingo, 23 de março de 2008

Ardem as trevas e outros lugares

Organizado em três grandes partes, este compêndio poético desafia a caminhar na «secreta raiz», pelos corredores da inquietação e do estremecimento, possibilitando-nos vestir a pele das coisas vividas e ter nesse gesto um apaziguamento inenarrável. Neste sentido – gesto que doutrina o gesto, da mão estendida em direcção a nós, e que nos pacifica – esta é uma poesia de revelação, de esperança, contra o esquecimento, contra a morte. Abençoadas mãos que nos devolvem assim as palavras, «o nome das coisas» agrilhoadas na alma.



Para conferir nas 121 páginas e nestes extractos



Perante a morte estamos sempre sozinhos.

Umas vezes de pé, desassombrados.

Outras deitados em concha, no soalho.

Umas vezes dela falamos, outras não.

Nessas fingimos ter a fala neutra e esquiva,

Como se a tristeza não enchesse o horizonte.



Sozinhos perante ela certo é que estamos.

Dobramos o riso na curva dos caminhos,

Juntamos mãos a outros gestos já traçados,

Calcamos passos sobre a terra

E beijamos, nos nossos filhos,

A memória que, nossa, não teremos.



Traço as letras. Ao traçar as letras,

Sei de que falo.

Entretanto, nunca o saberei.



****



Talvez tenha sido esse o dia (foi seguramente)
em que falaste de asas,
como se a noite as fizesse crescer
por delas falarmos:
e houvesse, ao nosso lado,
o intermitente rufar das suas penas.



****



Só ontem disseste caminhamos sozinhos,

e por isso só ontem te entendi:

o silêncio do mundo está cheio de vozes.





Ardem as trevas e outros lugares, Helena Carvalhão Buescu; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

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